Tuesday, April 26, 2011

A dívida


Ferreira de Castro

(...)
No escritório, que tinha portinhola aberta para ali, sentava-se Juca Tristão e, de caneta em punho, ia registando o que os seringueiros queriam e diminuindo os pedidos sempre que quem comprava tinha dívida grande na casa.
— Um paneiro de farinha? Não pode ser! Levas só dois litros.
— Mas que vou eu comer, seu Juca, na semana?
— Não sei. Deves mais de seiscentos mil reis. Trabalha!
— Trabalhar mais, eu? A mim nunca seu Alípio ou seu Caetano me apanharam na rede. Bem puxo pela estrada, mas ela é que não dá.
Juca Tristão não respondia. Quando o seringueiro tinha «saldo», vendia-lhe tudo quanto ele desejasse; fosse loucura rematada ou objecto inútil, tudo dava mais lucro do que passar-lhe, no futuro, um saque para ser trocado por bom dinheiro na «casa aviadora», em Manaus. Mas se o trabalhador, por curta estadia ali, por doença ou preguiça não conseguira solver a dívida inicial, que rebentasse de fome, pescasse ou caçasse, pois não lhe forneceria nada que fosse além do valor da produção. De sem-vergonhas que morreram antes de liquidar o débito ou que fugiram como cães, sem que ninguém os apanhasse, havia largo cadastro no seringal, a exemplificar quanto eram perigosas as transigências impostas por dó do coração.
— Então sempre vai o paneiro, patrãozinho? Juca dava-lhe a nota onde lançara os dois litros de farinha e o mais que concedera — e, sem outras explicações, atendia a novo seringueiro. Dali se vinha ao balcão, onde Binda, decifrando o papel, ia fornecendo o que lá estava escrito.
Mas para com os «brabos», ignorantes do que era e não era indispensável, Juca Tristão procedia de maneira diferente. Ele próprio organizava a lista do aviamento: o boião para defumar, a bacia para o latex, o galão, o machadinho, as tigelinhas de folha, todos os utensílios que a extracção da borracha exigia — e mais um quilo de pirarucú e uns litros de farinha, pois nos primeiros dias nunca um «bravo» sabe como se caça a paca e a cotia ou se pesca o tambaqui.
Aquele era sempre o «talão grande» que, somado as despesas da viagem e mais empréstimos, prendia por muitos anos ao seringal, em trabalho de pagamento, o sertanejo ingénuo.
Alberto viu-se com o seu na mão — setecentos e vinte mil reis parcelados por seis ou oito linhas — e, depois, sobre o balcão, meia dúzia de coisas que não valiam um pataco. Atribuiu a engano a soma alarmante, mas o rabo do olho, atirado à nota do vizinho, descobriu nela quantia igual, repetida em quantos papéis se estendiam para Binda.
(...)

(Ferreira de Castro, A selva: romance)

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