Monday, November 21, 2011

A transferên​cia da Universida​de portuguesa​, de Lisboa para Coimbra, num texto de Aquilino Ribeiro

«Na mocidade não era o homem mal apessoado que figura mais tarde nos retratos de Cristóvão Lopes. Chaveiro do pescoço, o que avultou com os anos e tomou relevo com a sua altura meã e as regueifas da face, tinha olhos garços e boca rosada, bem definida. De carácter, como já se disse, era dissimulado e, quanto a palavra, que ao seu tempo era oiro para os homens comuns, mostrou-se tão hábil político que só a mantinha segundo a maré das conveniências.» (Príncipes de Portugal: suas grandezas e misérias)
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«Possidónios», «abroeirados» e «sapateirais»
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IV

Passa também D. João III por ser um útil reformador do ensino e, implicitamente, por amigo das letras, o que admira em face do mau recado que deu dos estudos primários. Devido a incapacidade mental ou relutância ao esforço, o latim e humanidades nunca chegaram a entrar-lhe na cachimónia. Di-lo frei Luís de Sousa, o mais cauteloso e incondicional dos cortesãos.
Terem-no guindado a Mecenas do ensino deve-o sobretudo à transferência que ordenou da Universidade de Lisboa para Coimbra, e sua reorganização. Custa a admitir que despojar a capital em proveito de uma cidade sertaneja, que tal se nos apresenta Coimbra com a dinastia de Avis, possa ser considerado um mérito. As razões que se invocaram para assim proceder são de todo especiosas e verdadeiramente ludibriantes. A capital tornara-se de facto uma metrópole de desvairadas gentes, dada ao luxo e à sumptuosidade. Mercê do porto de mar, chegavam ali mais depressa que lá para o interior as auras novas. Nos navios vinham da Flandres, de mistura com missais, galhetas e mais artefactos sacros, os livros proibidos ou simplesmente libertinos. Agora que o silêncio provincial seja mais profícuo ao trabalho do enten­dimento que o bulício das cidades é discutível. Com este, coexiste o torvelinho das ideias e a febre espiritual. Os campos são bons para os bois—dizia um humorista, e realmente a natureza convida a tudo menos a pensar. Pensar é um artifício do homem, que saiu, segundo a Bíblia, das mãos do Criador ditosamente maciço e obtuso. De resto, tal modo de ver era já contraditado ao tempo pelas Universidades de Paris e de Bolonha, sitas em cidades cosmopolitas e ruidosas.
Quanto às outras razões, ainda elas se entremostram mais descaroàvelmente sofismadas. Ter-se-á escolhido Coimbra, ao tempo lá no calcanhar de Judas, em virtude do rancor inextinto que D. João III votara aos velhos lentes das escolas de Lisboa, que não teriam pejo de falar de sua memória rude, e haviam cometido o despautério de não comparecer à sua entronização de capelo e borla, subservientes e bajula­dores?
Fosse como fosse, transferiu a Universidade para Coimbra e de princípio foi o caos. Não havia ali biblioteca boa nem má, nem mesmo lugares aptos a receber mestres e discípulos. Houve que recorrer aos colégios eclesiásticos já existentes e o reitor resignou-se a dar aulas nos seus próprios apo­sentos.
Os velhos catedráticos de Lisboa, salvo Pedro Nunes, que foi ganhar um ordenado de grão-duque, recusaram-se a trocar a capital pela parvónia provincial. Mas para esta emergência estava D. João III preparado. A rogo de Diogo de Gouveia que dirigia em Paris o Colégio de Santa Bárbara, decerto em má postura económica, acedeu a tomar ali quartel para cinquenta pensionistas, que enviaria de Portugal. Chegou a completar-se esta lotação ? Não o dizem os tombos, mas o certo é que de Portugal seguiram para Paris vários mocinhos. Antes de mais nada, como a caridade bem entendida começa por nós, o principal de Santa Bárbara chamou os parentes, os Gouveias, todos eles de cepa judaica. Eram uma tribo, espertos e aplicados, e muitos, se não todos, marcaram um lugar de distinção. André de Gouveia foi chamado a Bordéus a reformar o Colégio de Guiana, caído em decadência, e nesse cargo mereceu os louvores de Montaigne. António de Gouveia leu filosofia na Sorbonne e sustentou contra Pierre de Ia Ramée, em prol de Aristóteles, uma polémica que ficou célebre. Um outro Diogo de Gouveia, com o agnome de Júnior, sucedeu na reitoria do Colégio de Santa Bárbara.
André, que era tonsurado, oferecia a D.João III a garantia das ordens sacras para professor dos seus meninos. Mais do que isso, encarregou-o de organizar o corpo docente que viria leccionar para Coimbra. Eram lugares bem pagos e a comissão portanto disputada. Vieram muitos na sua boa fé. André de Gouveia, que era oportunista, tanto assim que despira a samarra de judeu e vestira a sotaina de clérigo, em despeito destas boas qualidades de adaptação esqueceu que vinha de um país livre para a catacumba de uma sacristia.
Da mesma forma, os pobres lentes que o acompanharam, sem embargo da conformidade com as leis civis e religiosas, tudo o que havia de pensamento mais pot-au-feu, acabaram por ser relegados ao tribunal do Santo-Ofício que os encarcerou e torturou para que não tivessem a má ideia de vir ganhar a vida no país dominado por uma religião feroz que não admitia sabichões. Que foram os jesuítas que indicaram o caminho do Colégio das Artes aos familiares do Santo-Ofício, no intuito de alcançarem o monopólio do ensino? É possível. O sucedido mostra bem o apego que D. João III tinha ao ministério das letras e a delicadeza de alma que professava para com hóspedes que procuravam desempenhar a sua missão com honra. Assim ou assado, a Universidade, pedra lar das artes e letras, onde deviam prevalecer as luzes da razão em prejuízo das ideias estáticas da escolástica e da ciência antropocêntrica, tinha vivido o tempo que vivem as rosas. Dali em diante, ficou, no geral, a Instituição bafienta, inútil, arcaica, submissa às ideias feitas, onde jamais foi possível entrar um verdadeiro ar de civilização e sair outra coisa que não fossem as metanas exaladas pelo timpanismo dos mestres mais possidónios, mais abroeirados, mais sapateirais do Orbe.
 
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Príncipes de Portugal: suas grandezas e misérias, acabado de escrever e editado em 1952, foi proibido em 1953. Ler as intervenções sobre este livro nas páginas 370-377 do nº 183 do Diário da Assembleia Nacional (sessão de 13 de Dezembro de 1952). "Clicar" em 183.
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(...)
Não são só reis e príncipes que Aquilino Ribeiro amesquinha e ridiculariza, mas a própria Universidade e os seus mestres, que achincalha e reduz à mediocridade risível e enfatuada. E com isto não atinge apenas a vetusta e sábia corporação, madre da cultura, mas a própria cultura nacional, que ela fomentou e mantém.
Vozes: - Muito bem!
O Orador:- Para que a Câmara se aperceba do tamanho da injúria, vou transcrever as palavras de Aquilino Ribeiro, situadas no tortuoso perfil de D. João III, a pp. 146 e 147 do livro referido.
A propósito da transferência da Universidade para Coimbra e da reforma e renovação do ensino realizadas por aquele rei, Aquilino Ribeiro aproveita o lanço para aludir aos processos que a Inquisição moveu a alguns professores do Colégio das Artes e concluir daí que, perseguidos tais professores, o espírito científico e indagador abandonara para sempre a egrégia instituição e o País. Na verdade, Aquilino Ribeiro escreveu:
Assim ou assado, a Universidade, pedra lar das artes e das letras, onde deviam prevalecer as luzes da razão em prejuízo das ideias estáticas da escolástica e da ciência antropocêntrica, tinha vivido o tempo que vivem as rosas.
Dali em diante ficou, no geral, a instituição bafienta, inútil, arcaica, submissa às ideias feitas, onde jamais foi possível entrar um verdadeiro ar de civilização e sair outra coisa que não fossem as metanas exaladas pelo timpanismo dos mestres mais possidónios, mais abroeirados, mais sapateirais do Orbe.

Esta linguagem podem usá-la os pasquinários sarrafaçais que passam sem reparo, gorgulhando como os enxurros, a caminho da sarjeta; Aquilino Ribeiro, pela sua categoria mental e pelas responsabilidades que criou, não pode nivelar-se, barba por barba, com esses desesperados da notoriedade.
E tudo isto porquê, Sr. Presidente?
Só porque no século XVI alguns professores, que nem sequer o eram da Universidade, foram processados pela Inquisição!...
(...)
[Intervenção do Sr. Abrantes Tavares na Assembleia Nacional em 13 de Dezembro de 1952]

Ver
Desagravo. Três Discursos na Assembleia Nacional. Moção do Senado da Universidade de Coimbra

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D. João III

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