Wednesday, May 16, 2012

História de um azulejo de Eduardo Nery (1)


A primeira incursão de Eduardo Nery na área do Azulejo dá-se num contexto emergente do Design para a indústria cerâmica em Portugal, o "concurso ESTACO destinado a premiar os melhores desenhos de azulejo decorativo"(4), promovido em 1966 pela fábrica de cerâmica ESTACO, Estatuária Artística de Coimbra, em colaboração com a revista Arquitectura e o Sindicato Nacional dos Arquitectos.
O regulamento do concurso explicitava no seu ponto 2 que "Os desenhos destinam-se à reprodução em azulejos planos na dimensão de 15 x 15 cm; o conjunto, constituído por elementos de repetição, deverá ter características especialmente decorativas para a utilização em revestimentos de interiores e exteriores" lembrando ainda que "Deverão ser tomadas em consideração a facilidade e economia de execução industrial do desenho proposto"(5).
O enunciado do regulamento do concurso tem subjacente a concepção do Design tal como se definiu no pós-guerra, nas décadas de 1950 e 1960, o projecto concebido em articulação com os meios produtivos da indústria moderna, preocupação de grande pertinência num período em que se tentava modernizar a produção industrial portuguesa.
No folheto de apresentação dos resultados do concurso fazia-se a apologia do azulejo como "revestimento mais estável e económico" que se "mantém inalterável através do tempo", não permitindo "o aparecimento de bolores", com aplicação facilitada pelas "medidas sempre iguais, uma só chapa" capaz de compor "revestimentos alegres com o seu poder de refracção [sic] da luz" e que "não riscam ou absorvem a água quando lavados", sendo a sua qualidade garantida por ser "um material aprovado e controlado pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil".
O prêmio deste concurso foi ganho pelo arquitecto Homero Gonçalves (n.1933), motivo assente em arcos de circunferência simétricos e contracurvados, e com uma única cor sobre outra de fundo, unidade capaz de grande variedade de combinações, logo de múltiplas superfícies de padrão e fácil produção.


O mesmo conceito, o de módulo de repetição de um único azulejo, capaz de criar inúmeros padrões simples ou articulados em sucessão, foi aplicado por Eduardo Nery num motivo assente nas linhas diagonais rectas do quadrado cat. 19, uma barra central que dividia o espaço do azulejo em dois campos, um ocupado por barras paralelas e outro por meia barra diagonal perpendicular à primeira. As relações métricas entre estes elementos garantem as ligações através do desenho e da cor, seja por continuidade seja por alternância entre azuis e amarelos.
O artista propiciava deste modo um elemento plástico capaz de ser gerido pelo utilizador a quem caberia criar os padrões, consoante necessidades e gostos individuais, com diferentes escalas e dinamismos visuais, simples ou compostos entre si.
A função do criador era fornecer ao público um elemento passível de infinitas combinatórias que, permitindo a qualquer cidadão inventar o seu próprio revestimento de azulejo, partilhava com ele a capacidade de intervenção estética no quotidiano.
O princípio da obra aberta explicitado por Umberto Eco, não só como infinita variedade de leituras mas sobretudo de infinitas apropriações materiais do objecto artístico pelo indivíduo, é aplicável a este projecto de padrão que foi transposto para Combinações múltiplas cat. 29, conjunto de 48 cubos de madeira cujas faces repetiam o mesmo desenho e que, recuperando uma atitude de jogo infantil, convida o espectador a descobrir as suas próprias combinações.
A utopia do utilizador criador, ou seja, cada um tem uma potencial capacidade estética que deve exercer de modo interveniente no quotidiano, parece não ter radicado nos imediatos hábitos de consumo, e coube a Eduardo Nery a aplicação deste módulo em projectos de espaços públicos, provando-se, isso sim, a sua enorme riqueza plástica.
Em 1971, cinco anos após a sua criação, o módulo foi produzido pela Fábrica Cerâmica Viúva Lamego para ser aplicado na agência do então Banco Nacional Ultramarino de Torres Vedras, em revestimentos integrais de paredes com padrões singelos ou compostos por diferentes temas, construindo ambientes visuais que, mesmo com grande variedade de escalas e configurações, tinham sempre garantida a unidade plástica pelo uso das mesmas cores e motivos geométricos cat. 43-46.
Esta obra ilustra de modo singular a criação do Design enquanto disciplina projectual que deseja unir qualidade estética com inteligência na produção industrial e, ao mesmo tempo, responder a necessidades funcionais da existência quotidiana.
Com efeito, para além da facilidade de produção deste azulejo e da sua potencial riqueza visual quando repetido, Eduardo Nery inscreveu nas suas composições preocupações de orientação nos espaços funcionais desta agência bancária, os ritmos acentuando direcções nos percursos dentro do edifício, a identificação dos lugares pela mudança de cor entre os espaços públicos e os das garagens, percorridos por uma vibração sensível no ambiente, discreta mas suficientemente presente para suscitar o devaneio lento do olhar.
Dez anos mais tarde, em 1981, Eduardo Nery propôs outra aplicação deste azulejo, agora com os amarelos predominando sobre os azuis e revestindo volumes geométricos no pátio interior do Centro de Saúde de Mértola, objectos que mobilam o espaço, diferentes paralelepípedos como assentos e apoios, e pilares quadrados com o mesmo padrão em espinha que, por repetição, configuram um inesperado-distanciamento cenográfico cat. 56-58.
De algum modo, a proposta feita em 1966 de 48 cubos para Combinações múltiplas, objecto a ser reinventado ludicamente pelo espectador, é ampliado da escala da mão para a do corpo e, desmultiplicado, transforma-se em referência poética de um lugar de pausa que, mais do que equipamento estrito de descanso físico, parece constituir concretização de algumas das efabulações espaciais que o autor projectou na sua pintura.
Para as plataformas de embarque da estação de comboios de Contumil, projectadas entre 1992 e 1994, Eduardo Nery retomou este módulo de repetição, com três variações cromá-ticas - amarelos contra azul de cobre com barras e triângulos a azul cobalto / amarelos contra branco com barras e triângulos a azul cobalto / amarelos contra branco com barras e triângulos a azul de cobre - e compôs planos estruturados em faixas verticais distribuídas simetricamente, individualizando-as com diferentes padrões, cores e intensidades luminosas. As paredes dos cais de embarque, construídas entre pilares no eixo da plataforma, autonomizam-se como campos seriados de pintura com organização repetitiva cat. 117-125.
Servidos por um mesmo módulo de repetição mas capazes de se adequar a diferentes espaços e funções e de criar experiências estéticas diversificadas, estes projectos revelam uma laboriosa imaginação decorativa, qualidade evidente também nas composições desenhadas para as salas de audiência do Tribunal de Setúbal, entre 1993 e 1994.
(...)

(4) HENRIOUES, Paulo - Módulo, padrão e jogo. Azulejos de repetição na segunda metade do século XX. Oceanos. Lisboa: C.N.C.D.P., n° 36/37 (Out. 1998/Mar. 1999).
(5) idem

(Excerto de) A variedade da repetição em
[Autor(es): Paulo Henriques, Rocha de Sousa, Sérgio Vieira]
(Imagens e texto copiados por mim) 
-
Ver
Eduardo Nery (Official Website)

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